A guerra da Ucrânia e o paradoxo das esquerdas
Jason Tércio
Se estivéssemos em 1939, a maioria das esquerdas brasileiras estaria apoiando Hitler e a invasão da Polônia que deu início à Segunda Guerra Mundial. Afinal, naquele ano a Rússia se aliou à Alemanha nazista, assinando em agosto um pacto de não-agressão, e no mês seguinte os dois países invadiram e ocuparam a Polônia, com uma diferença de quinze dias. E Hitler era o líder mundial que mais criticava as elites capitalistas – os “plutocratas do Ocidente” -, o que seria motivo suficiente para ter o apoio entusiasmado das esquerdas brasileiras.
É o que se pode concluir do apoio que uma parte das esquerdas está dando à Rússia em sua invasão da Ucrânia.
A grande ironia dessa guerra é que a Rússia tem a maior extensão territorial do mundo, e ainda faz uma guerra desgastante para ter um pedaço do território do vizinho.
A narrativa predominante é que a guerra envolve uma disputa indireta entre Estados Unidos e um novo bloco geopolítico capaz de romper a atual hegemonia mundial unipolar do imperialismo americano. Apoiar a Rússia, portanto, segundo essa visão um tanto esquemática, é ajudar a construir um mundo novo, multipolar, mais justo, sem a dominação dos EUA e seus “títeres” europeus.
Por isso, e reverente ao passado soviético (um passado que Putin abomina), a maior parte das esquerdas brasileiras endossa a invasão da Ucrânia e a justificativa de Putin, ou seja, a OTAN teria avançado demais nos países vizinhos da Rússia, ameaçando sua soberania nacional.
Esta justificativa é uma falácia. É como um urso considerando ameaça à sua vida a presença de meia dúzia de ratos na porta da caverna. Moscou tem o maior arsenal nuclear do mundo e nenhum país da OTAN no leste europeu tem esse tipo de armamento, apenas armas defensivas. A Coreia do Norte tem armas nucleares há muito tempo e nem por isso a Coreia do Sul se sente ameaçada de extinção. Aliás, em 1994 a Ucrânia entregou todo o seu arsenal nuclear à Rússia, para destruição, mediante a garantia de segurança prometida no Memorando de Budapeste, assinado pelos EUA, Inglaterra e Rússia.
Divergindo totalmente do que pensam as esquerdas brasileiras, as esquerdas da Rússia (com exceção do fisiológico Partido Comunista) e de outros países do leste europeu condenaram desde o início a invasão da Ucrânia. Historiadores, sociólogos e cientistas políticos da região veem a guerra de ocupação como decorrência de uma crise de legitimidade da burguesia russa e uma estratégia com nítido caráter imperialista.
Volodymyr Ishchenko, pesquisador do Instituto de Estudos do Leste Europeu na Universidade Livre de Berlim, Oleg Zhuravlev, do Laboratório Público de Sociologia de Moscou, e Oksana Dutchak, vice-diretora do Centro de Pesquisa Social e Trabalhista consideram essa guerra tão reacionária quanto o próprio governo Putin e está servindo apenas aos interesses das classes dirigentes russas. Putin com sua política neoliberal governa com cerca de 100 bilionários rentistas russos que tiveram super-lucros com as privatizações e adquiriram imóveis e bens de luxo nos países europeus que ele critica.
Na interpretação das esquerdas da região (que devem entender um pouco melhor do que nós o que está acontecendo), a partir do fim da União Soviética, a sociedade russa passou por um longo período de despolitização. Mas em 2012 começou uma crescente onda de protestos populares, contra fraude nas eleições legislativas para a Duma no ano anterior. Semelhante inquietação social, por diferentes motivos, ocorreu na Ucrânia em 2014, em Belarússia em 2020 e no Kazaquistão em 2021. As classes dirigentes russas estavam incapazes de manter uma liderança política, moral e intelectual sustentável. Por isso Putin lançou uma estratégia de “contra-politização”, segundo o sociólogo russo Oleg Zhuravlev.
Putin foi fechando cada vez mais os espaços democráticos. Com a anexação da Crimeia e a invasão da Ucrânia, vieram o cerco à imprensa e a repressão a protestos e às liberdades fundamentais, inclusive direitos de reunião e de greve.
Portanto, as esquerdas brasileiras, obcecadas com o “imperialismo americano” (um tigre de papel atualmente), não enxergam a estratégia imperialista russa de querer dominar e ampliar o seu “quintal”. Ou melhor: talvez enxerguem a estratégia russa, mas como um imperialismo do bem. Ora, não existe imperialismo bonzinho. Como declarou o historiador e ativista Taras Bilou ao site OpenDemocracy, “Se as esquerdas continuarem culpando só a OTAN pela invasão da Ucrânia, estarão mostrando que não entenderam a situação”.
É do interesse de Putin prolongar a guerra e usá-la politicamente, como garantia de sua continuação no poder. A mesma tática de Netanyahu. Enquanto isso, as esquerdas brasileiras (e parcialmente de outros países latino-americanos) cometem um grande erro de avaliação e se posicionam na contramão da História, apoiando Putin, um político de extrema-direita (basta ler seus discursos), ligado à ala mais reacionária da Igreja Ortodoxa russa.
Condenar a invasão da Ucrânia, como fazem várias organizações de esquerda, não significa apoiar o governo corrupto de Zelensky; significa coerência com os princípios socialistas de paz e de respeito à soberania dos povos.
Quanto à ameaça de Putin de usar armas nucleares (por enquanto começou a usar mísseis balísticos sem ogivas nucleares), é um blefe. Ele sabe que a retaliação do “Ocidente”, como última opção, seria também com armas nucleares, o que destruiria Moscou em poucos minutos. Não acredito em Terceira Guerra Mundial, até porque seria uma destruição mútua total – ao explodirem as primeiras bombas nucleares, não restará mais ninguém para lançar as próximas. Mas tudo é possível com um despirocado na Casa Branca e um desesperado no Kremlin – tão desesperado que pediu ajuda militar à Coreia do Norte e precisa ameaçar o mundo com arma nuclear.